segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Relato de Doulagem - VBAC Domiciliar com transferência Hospitalar

Diário de Sonho



A leitura desse relato ganha luz quando acompanhada da música abaixo:
Nando Reis - Muito Estranho - Clipe Oficial: https://www.youtube.com/watch?v=FwfC6GqH6cQ


Eu tenho um Uninho prata, 2011, desses bem populares, tipo Gremilins, a todo lado que se olha, vemos um igual. Além dessa características "sessão da tarde", ele tem atribuições transformers. Sim! O rádio do meu carro fala comigo. Ainda bem que psiquiatras não frequentam páginas de humanização. Enfim, num dia tava eu dirigindo, tocou uma música que amo: "Trem do desejo", cantado pela Maria Bethânia que amo mais ainda. Antes de acabar a música, meu celular tocou, era a Carol, minha parceira querida de Doulagem, que me falou com seu sotaque do sul: _ tu topas um parto domiciliar?
_Uai, respondo eu. Topo! O nosso primeiro PD.


Lá fomos nós pra casa da Cliente. Cris, Leandro e Vicente, o filho mais velho de três anos. Coincidentemente, como a Carol,  eles eram do sul, tinham profissões próximas e torciam pro Inter. Eu era a única representante da massa atelicana naquela sala. Cris, era professora universitária, bem informada e empoderada. Teve seu primeiro parto roubado pelo sistema em uma cesárea desnecessária, por bossa, com bolsa integra. Por isso, ela frequentou grupos de apoio, leu bastante sobre o tema, tinha os contatos, mas com 39 semanas ainda não tinha decidido se contrataria ou não uma doula.


Leandro estava super envolvido com a gestação e parto. Disposto a construir uma história diferente para Isadora, a bebê da vez.  Contou como estava atarefado com todos os ítens para o conforto da Cris e da equipe. Vicente é comunicativo, amoroso e mescla os dois sutaques deliciosamente. O encontro foi agradável,  mas saí de lá com duas dúvidas: Cris desejava mesmo uma doula e este parto seria de fato domiciliar?


Cheguei em casa cansada. Minha filha estava agitada, talvez por reflexo a minha agitação mental. Não quis mamar. Dormi junto com ela sem meditar. Dispertei num sonho. Estava no Sofia, em trabalho de parto, mas não conseguia parir. A enfermeira homeopata, (que é a própria representação da sabedoria feminina) em tom de autoridade, me falou: _ sai daqui! Se permanecer não vai conseguir parir. Acolhi o que ela disse, mesmo sem entender e fui para a casa das práticas integrativas. Estava acompanhada da minha Doula Kalu, não podia vê-la, apenas sentia sua energia e os cachos do seu cabelo sobre meus ombros.  Ali minha filha nasceu. Eu a peguei no colo e quando olhei para o seu rosto ela era a Cris.


Acordei assustada. O sonho foi tão real que eu podia sentir reflexos das contrações. Fui a cozinha, tomei água.
Quando voltei fui ver as horas e vi que tinha uma mensagem. Era da Kalu. Pedia ajuda no grupo de Doulas,  para ficar com uma gestante. Eu me propús, mas com a condição de um tempo reduzido, ridículo. tive medo, de dirigir "na noite escura"*, de deixar minha filha, enfim de sair da minha zona de conforto. Não fui capaz de escutar o que a enfermeira me disse: você só vai parir/ renascer/ doular quando se lançar no desconhecido.
Acordei menstruada, o que explicava as cólicas da noite, mas simbolicamente podia ser a natureza me mostrando que é cíclica e quem sabe na próxima lua eu tenha uma outra chance.
Exatamente sete depois a Cris me ligou confirmando a nossa contratação e pedindo uma visita. Não pensei que fosse tão rápido, mas dessa vez não perderia "o trem"*. Entendi que: quando "eu me perdi, foi que aprendi a brilhar"*.  Liguei para a Caroline e deixamos tudo acertado.
Três dias depois, Cris me ligou, em trabalho de parto na fase latente e pedia minha presença. Deixei meu marido  cuidando da minha filha e fui.


Cheguei às 23:20h à casa dela. Prestei a assistência possível, mas pouco efetiva. Praticamente não conversamos. Ela tentava se concentrar na dor, na posição, na respiração, na barriga... E a impressão era de dispersão por múltiplos focos. Tudo a retirava de si: a casa, as pessoas, os ruídos. Estava nítido que havia um excesso no ambiente interno e externo. Mas tudo estava sendo experimentado, então não havia o que descartar só o que acolher.


De madrugada a Míriam chegou. Calma e serena, iluminou a casa com sua paz. Trouxe mil malas, se certificou que tudo estava certo e para o meu espanto deitou e dormiu de roncar! Pensei: como ela consegue? Eu estava tão travada que não durmiria por nada. Às 9:00H, por recomendação da Miriam me recostei no sofá. Peço a Deus que não tenha acordado o Vicente com meus roncos. Aqui recebi outro ensinamento de uma Mãe Selvagem**: "cuide-se para cuidar!".


Saí da casa às 11:30h do outro dia. Morta! Minhas forças foram gastas nos meus investimentos também dispersos e na minha frustração do parto não ter ocorrido.


Dormi à tarde toda e a noite toda. Acordei com a mensagem da Carol me chamando para rendê-la novamente, o parto parecia estar distante. Liguei pra minha mãe pra ela ficar com minha filha e fui. Peguei um engarrafamento mostro e fiquei refletindo sobre meu cansaço. Conclui que eu apenas receberia o que o dia me apresentasse. liguei o Rádio e tocava "Cuida bem de mim". OK Uninho, entendi,  tudo o que eu não fiz no dia anterior foi cuidar de mim: não me alimentei direito, não descansei, não reapirei corretamente... Desperdissei minhas energias tentando ser constante e fui ausente de mim mesmo.


Chegando lá fui recebida por todos no portão. Cris tinha outro semblante. Perguntou sobre o meu parto e como ele foi conduzido. Respondi a tudo e com a acalmada das contrações sugeri um escalda pés. Tive a assistência fofa do Vicente. "Vou por maise, num tô sentindo cheiro de lavanda". Um doulinho!
Conversamos. A Míriam, chegou e completou o grupo terapêutico. Cris pode falar sobre suas expectativas, os estímulos da casa e seus medos. Foi um bom momento.


Fomos caminhar e ainda falando sobre parir em casa eu contei sobre o meu sonho. Pareceu importante me colocar um pouco mais como pessoa para que ela também se apresentasse um pouco mais. A mensagem do sonho fez sentido para ela também. Contei também que no dia da visita uma fala dela gritou no meu ouvido de psicóloga. Ela falou que a casa aonde moravam, naquele momento, nao era o imóvel que ela idealizava para o parto. Ela relembrou a frase e disse que estas observações a ajudaram a pensar melhor.
Fizemos uma visualização do nascimento e ela pôde descansar por um tempo junto com o Leandro.
Durante o dia foi acarinhada pela mãe, recebeu declarações de amor do Vicente e muito cuidado do marido.
A enfermeira Janaina, fez um rebozo na Cris e depois eu tive que fazer outro no Vicente. A Jana amorosamente falou sobre o modo de viver as contrações e deu dicas preciosas. E a Cris externalizou a dificuldade de gerenciar respiração, pensamentos, dor... Então sugeri:_ quem sabe não seria melhor não pensar em nada. Ela fez um expressão de perplexidade. Sim! Esvazie a mente!


À noite, por volta de 23:00h, as contrações, que até agora foram irregulares, se intensificaram. Leandro amarrou o sling na grade da janela e Cris podia puxá-lo quando vinham as dores. Depois de uma horas com o mesmo padrão acompanhei Cris até o chuveiro e pedi ao Leandro que ligasse para a Míriam. Ela veio acompanhada da Karina, enfermeira da sua equipe, super competente e com ótima didática para explicações. Achei que Isadora chegaria naquele momento. Mas... Não.


Pela manhã o trabalho de parto desengrenou. Foi feito um toque e estava com 4 cm de dilatação. Fui rendida pela Carol. Saí de lá às 7:00h da manhã do outro dia, tranquila e energizada, pois não me movi contra os fatos, apenas os acolhi. Cheguei em casa, dei de mamá e dormi duas horas abraçada com a minha filha.
No horário do almoço Carol mandou uma mensagem informando que eles estavam no Sofia e ela não poderia ficar por muito tempo.


Cheguei ao Sofia às 15:15h. Tinha um clima de tensão no ar. Havia uma marca na barriga da Cris. Começaram a investigar ruptura uterina, devido a cicatriz da cesárea anterior. Foi avaliada por dois GO's e fez ultrassom. Passou-se uma sonda de alívio e foi retirado uma quantidade expressiva de urina. Boa parte do anel se desfez. Ficamos mais tranquilos e ela se animou a se movimentar. Dançou com a Míriam, acocorou e comeu salada de frutas, tudo bem, até começar a sentir calor. Mediu-se a temperatura e o médico diagnosticou febre intra parto e prescreveu antibiótico. A Miriam sugeriu um banho e o casal foi para o chuveiro. Eu já estava sentindo vertigem de fome, me sentei para comer alguma coisa. Com uma mordida no pão de queijo escutei um grito do Marido pedindo ajuda. Era o primeiro puxo. Não deu tempo para o antibiótico.


Tentou a banqueta, não foi confortável, tentou o arco sobre a cama não foi aconchegante, mas não dava mais pra mudar, Isadora já coroava, embora Cris ainda quisesse experimentar outras posições.
Com 20 minutos de expulsivo, Cris pariu lindamente acocorada sobre a cama amparada pelo marido, às 18:30h de terça feira.
Olhei para eles, visão turva pelos olhos cheios de lágrimas e vi o alívio da Cris, o orgulho do Leandro e a contemplação afetuosa da Míriam.
No total foram 90 horas de doulagem, revezados entre Carol e eu e só depois do expulsivo pude entender melhor a Cris. Na minha interpretação ela era alguém a quem o saber formal era importante. Por isso, no seu primeiro parto entregou-se a tutela médica hospitalar. Onde culturalmente acreditamos  estar bem amparados. Mas não esteve. Na jornada desta gestação ela precisou inquerir todo saber: da enfermagem, da doula, dos médicos, mas principalmente o próprio saber. Desconstruir e reconstruir seus planos a partir da experiência. Para essa vivência "um dia foi pouco", foram precisos quatro dias. Por que cada um tem um tempo e dar prazo para elaborações psíquicas é desumano.  No parto não estão envolvidos apenas um útero, uma vagina e um bebê, mas sim uma mulher (com tudo que isso quer dizer e ainda não diz), uma criança e um ethos (modo de vida de um povo).
A todos que de algum modo ficaram sabendo do tempo total do trabalho de parto, seguiu-se imediatamente o comentário:_"Coitada!". Isso diz de nós. Retrata como almejamos uma vida súbita e indolor. Cris, você não tem nada de coitada, tão pouco de heroína, já que o oposto seria a face da mesma moeda. Acho que você é uma Mulher que, nesse tempo, pôde cuidar da sua criança interior e da bebê que gestava. E mesmo que pareça "muito estranho"***, você fez o melhor por seguir seu desejo, já que " ninguém vai dormir nossos sonhos"***. Viva o sonho de ser mãe da Isadora e do Vicente!


* Trem do desejo, Vanderlee
* * Mulheres que correm com os lobos
*** Cuida bem de mim, Dalton






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