quarta-feira, 15 de abril de 2015

Relato do meu primeiro Parto e Nascimento da Isabelle


Sugiro que a leitura seja acompanhada desta música:
https://www.youtube.com/watch?v=IwDazs5ScCA

Eu me formei Psicóloga na PUC. Durante todo o curso me dediquei quase exclusivamente a psicologia hospitalar, li todos os livros, fiz todos os estágios que pude e no final fiquei quase um ano desempregada. Quando eu já tava pensando em aceitar um emprego em RH (desespero total) eu fui contratada num hospital geral.

Meu tema favorito sempre foi a assistência a pacientes terminais e suas famílias. No hospital me dediquei a esse público com carinho e afinco pois um dia, quando eu era acompanhante em um episódio de perda, não tive a oportunidade de ter atendimento psicológico, então a cada caso que eu atendia era como se o fizesse pela minha família da adolescência.

Em todas as vezes em que presenciei meus pacientes deixando essa vida, concluí que morrer pode ser mais bonito até do que nascer. Dependendo da perspectiva do doente, morrer é um retorno para casa, é uma libertação de um corpo limitado e adoecido. Observei também desenlaces sofridos e sempre associados ao apego as paixões deste mundo. Certa vez deu entrada no hospital uma senhora que era líder de uma comunidade religiosa, cercada de mulheres do mesmo coletivo, fui convida por elas a participar da cerimônia para seus últimos minutos aqui na terra. Só mulheres podiam estar presentes. Elas entoavam um canto sofrido e lindo enquanto a senhora suavemente fazia sua transição deste mundo para a transcendência. Aquilo não foi morrer, foi renascer. Minha gratidão a tudo que vi e aprendi neste trabalho.

Claro que nem sempre foi fácil, todo dia era uma luta. A morte foi institucionalizada, logo deveria se adequar ao protocolo clínico. Os familiares não podiam chorar na presença do doente, não podiam chorar alto quando ele falecia, enfim, não podiam chora. O paciente não era acolhido quando expressava suas angústias e a equipe jamais deveria se envolver com os casos, neutralidade era a conduta esperada e é assim em quase todas as instituições de saúde. Um exemplo didático: se o paciente pergunta a fisio se ele vai morrer ela diz: _ Não tenho capacidade técnica pra responder, melhor o senhor perguntar ao médico. Como o médico só vem no final do dia e por pouco tempo, ele pergunta a enfermeira que o abraça e faz um Buscopam na veia, mas sai sem nada dizer e chora no banheiro. Chega o médico e o paciente está dormindo. Mas como ele ficou sabendo do caso, deixa uma interconsulta solicitando atendimento da psicologia, afinal quem ouve somos nós. E assim segue o sistema.

Eu até ali lidava bem com os dois locus, tanto o da terminalidade como com o institucional. Mediava equipe e pacientes tranquilamente. Hoje eu vejo que eu tentava ser aquele profissional polivalente que atendia a todos os lados sem se colocar em lado nenhum. Por que: "Quando já não tinha espaço pequena fui, Onde a vida me cabia apertada, Em um canto qualquer acomodei" (Maria Gadú, Quando fui chuva)

Logo que engravidei toda a minha base teórica, prática e de análise pessoal não foram suficientes para me sustentar. As histórias dos pacientes me impactavam mais, eu não mais me recolhia diante dos impasses da clínica e passei a enfatizar meu posicionamento filosófico sobre a conduta. Lembro de uma amiga enfermeira, Luciana, com quem vivenciei experiências lindas, me dizendo que eu estava irreconhecível, que eu era outra pessoa. Ela estava certa.

Eu não planejei engravidar. Tinha cinco meses de casada e fazia planos para ser mãe em cinco anos. Mas o bebê já estava lá. Eu mal me acostumava a vida de casada e já tinha alguém morando em mim. Eu demorei quatro meses pra descobrir a gravidez, meu endócrino já me avisara que eu não engravidaria sem um tratamento longo. Os primeiros sintomas foram interpretados por mim como o início de uma depressão. A vida pessoal e profissional dava sinais de que algo estava fora do lugar, eu não sabia o que era, por isso uma fadiga tomava conta de mim, eu chorava a noite toda, não dormia e comia doce de pêssego no jantar com pizza de sobremesa. Era depressão.

Quando um palito de teste vagabundo me disse que eu tava grávida tudo fez sentido. Eu não estava adoecida, eu estava renascendo. Tudo girou, todas as minhas lagrimas tinha uma razão, eu me limpava, "lavava os sonhos e as calçadas" (Maria Gadú)

Com oito meses de gestação fui atender uma menina de sete anos que veio visitar o avô com câncer terminal. Provavelmente aquela seria a última vez que ela o viria nesta vida. Seria mais uma de tantas outras visitas infantis. Mas não foi assim. Perguntei se ela sabia o que o avô tinha, ela disse que sim, era câncer. Indaguei o que ela conhecia disto e a menina, fofa grau 10, me disse chorando que o câncer era uma doença que tirava as pessoas que amávamos e as devolvia a Deus. Chorei. (Uai, Psicólogo chora?) Não havia o que dizer. Nunca tinha ouvido descrição mais acertada. Não pude presenciar a visita de fato, como sempre fazia. Mesmo ciente da importância daquele momento para o trabalho de luto posterior eu não podia estar lá.

Com nove meses fui atender uma paciente que teve um surto psicótico após complicações em uma cirurgia. O delírio dela era estar grávida de uma menina. Atendi a ela e seus familiares por algumas semanas. Ela já estava estável psíquica e fisicamente quando a atendi pela última vez. No dia seguinte recebi a notícia do seu óbito. A família me relatou que a última coisa que ela pediu foi que trouxessem um presente a minha filha. Eu não sabia, mas aquele era um presente para o meu futuro. Era uma notícia de que a vida e a morte tem vários lados, várias perspectivas e que eu precisava me posicionar.

Paralelo ao trabalho formal eu embarquei numa pesquisa pra saber como seria o meu parto. Quando comentei sobre isso com alguns colegas todos me indicavam obstetras ótimos que faziam cesárea nos melhores hospitais da cidades. Ao mencionar que estava cogitando dar a luz no Sofia o susto e a revolta eram generalizadas: "Você não tem convênio? ", "Parto normal é para pobre!", " Aquilo é açougue! ". Calma gente eu tenho o convênio "fulano de tal", mas estou conhecendo minhas possibilidades. Eu podia dizer: O parto é meu e quem vai decidir sobre isso sou eu! Mas não eu precisava entender, acolher, manejar...

" Que isso! Seu convênio é o melhor que existe, os médicos vão amar te atender". Mas e eu, vou amar ser atendida por eles?

Minha irmã tem uma grande amiga que a sua irmã era enfermeira no Sofia, a Raquel. Ela me atendeu para o pré natal e eu o fiz conjugado com a médica do convênio. Uai menina, fez dois acompanhamentos? Fiz, porque eu precisava da "segurança" que só um médico tradicional poderia me dar. Era importante me assegurar que tudo tava controlado.

A cada consulta fui conhecendo a filosofia do Sofia, a forma de trabalhar, o modo como o processo do parto era amparado e tudo isso me fez refletir sobre a assistência da saúde geral, tudo me fazia lembra a minha rotina, meu pré natal foi uma visita técnica. Óbvio que o Sofia tem suas questões. Mas há naquele lugar um ethos, um jeito diferenciado de fazer as coisa. Tal observação me sacudiu, fazendo com que eu recalculasse minha rota.

Lá pelas 37 semanas a médica do convênio, que era super a favor do parto normal, começou a ver alguns problemas na minha gestação, até então perfeita. Vejam só vocês que coisa grave (isso é ironia), meu colo encontrava-se grosso, duro, sem dilatação e eu não apresentava nenhum sintoma de trabalho de parto. Talvez fosse necessário uma cesárea. Mas não havida nada com o que se preocupar, afinal de contas meu plano de saúde era ótimo. Ela só não contava que o meu plano de parto era melhor ainda. Essa foi a última consulta que eu fui.

Decidida a parir no Sofia, não quis doula nem fotos muito menos filmagens. Meu marido e eu fizemos sozinhos iriamos parir sozinhos. Três dias de prodomos, Já tinha feito escalda pés, ventosa, acumpultura, tomado mil litros de chás e feito escalda pés. Nada da menina nascer. Cheguei no PA com a certeza de que ela tava na portinha e a Raquel me dá a notícia de dois centímetros de dilatação. Eu estava há horas com contrações dolorosas de cinco em cinco. Mais um pouco de espera e em fim fui internada. Só nós dois, Dani e eu, cansados, sem dormir, sem nos alimentar, fadigados de ouvir meus gemidos de dor. Estávamos tensos, felizes de ver nossa Preta pela primeira vez. Essa era a nossa grande empreitada como marido e mulher e tudo parecia solene demais. Tinha o peso da vida fisiológica, mas tinha também a vida familiar que se formava. Tudo incerto e intenso.

Raquel sugeriu que eu fosse para a banheira o que eu logo aceitei pois na minha idealização tão logo eu adentrasse meu bebê sairia, tal e qual se dava nos vídeos de parto que eu assistia. Não foi assim. Daniel foi ao refeitório buscar comida e Raquel foi ao posto de enfermagem. Fiquei sozinha na banheira, a meia luz. Passei a mão sobre a barriga gigantesca e pedi a Deus na mais profunda das minhas orações: _ Senhor, enche este quarto de anjos, sozinha eu não vou conseguir. Neste momento eu senti a presença mais acolhedora e reconfortante, seguido de um barulho. A bolsa estourou. Pensei: _Obrigada Senhor, agora nasce! Nasce nada. A dor veio galopante. Eu me revirava na banheira, não tinha mais posição, tudo era doloroso. Beleza, eu entendi que não tô sozinha, mas esse anjo aí não alivia a dor não?!

_ Agora você tem que sair da banheira pra eu fazer um toque.
_ O que? Nem fudendo. Mas já deve ta nascendo mesmo, vai ser o último.
_ Quatro centímetros de dilatação!
_ Em?
Mostrou com os dedos, 4.
Vontade de sumir do mundo. _Oh Raquel, vamos botar uma ocitocina aí, porque eu não aguento mais. Ela me enrolou até eu não deixar mais escapatória. Ela sabia que depois disso,  aí sim ia doer. E doeu, viu. Pedi cesárea, pedi pra ir embora, pra tirar a dor, pra morrer... Recebi a analgesia.
_Que que isso gente. Porque não fez isso antes? Eu sabia dos riscos, dos malefícios da medicação, mas... foda-se, eu precisava dormir. E foi o que eu fiz. Dormi por uma hora, enquanto Daniel gastava sola de sapato andando de um lado para o outro no quarto, querendo que eu me levantasse e caminhasse. Eu simplesmente não conseguia. Quando fiquei de pé e fui caminhar comecei a sentir uma cólica. Mas, quê que tem, o bebê já ia nascer mesmo. Já eram três da manhã. A cólica virou dor, a dor virou delírio e o delírio virou desejo de homicídio.
_ Me dá outra anestesia, pelo amor de Deus!
_ Agora não pode. Só as sete da manhã, quando trocar o anestesista.
_ Tá doida Raquel, eu trabalho em hospital, ninguém inicia plantão as sete.
Ela só me olhou. E nos deixou a sós um instante.
Daniel: _ Pede uma cesárea agora. Vocês vão morrer aqui, vai passar da hora, você não está aguentando mais.
_ Eu vou pedir.
Quando Raquel veio eu falei: _ Ou faz a cesárea ou eu vou embora daqui. (Desculpe, Raquel)
Raquel trouxe a supervisora de Enfermagem pra conversar comigo.
_Olha, não grita, eu sei que ta doendo, respira fundo, cesárea vai cortar sua barriga é cirurgia, oh você tá gritando, respira, você terá uma cicatriz por resto da vida, oh não grita, é risco pra você e para o seu bebê, oh respira, vamos tentar mais um pouco?
_ Vamos!
Daniel se levantou, puto da vida, foi para o outro canto do quarto manifestar sua síndrome das pernas inquietas*.

Raquel se sentou ao meu lado, me deu suas mãos magrelas, Dani assumiu o posto da massagem na lombar e assim vencemos a madrugada. A cada contração eu espremia as mãos da Raquel e o Dani espremia suas mãos na minha coluna. E nem adiantava me mandar parar de gritar.  A dor do parto é um fenômeno atípico. Diferentemente da dor da humilhação, do descaso e do abandono, a dor do parto não gruda. Ela não faz morada na mãe. Ela passa.

 Assim que deu sete horas da manha eu estava na sala de anestesia sendo medicada. Queimei minha língua. Voltei para o quarto e uma nova enfermeira rendeu aquele "anjo de candura da noite", agora sim a sala estava de fato cheia de anjos daqui: Daniel, Raquel e Adrinez. Eles caminharam comigo e a cada contração nós nos acocorávamos. Eu andava e via rastros de sangue pelo quarto. Mas não senti medo, sabia que estava bem amparada, também não tinha mais força pra gritar. Sentia-me esvaziada, imersa em mim. Certa hora elas me disseram para me sentar na banqueta, Dani ficou na cama e eu me recostei nele. Por causa da analgesia eu não sentia os puxos. Mas sabia que a hora estava chegando pela dor.

Neste instante eu entrei num transe. Não sei dizer quanto tempo durou, eu jurava que foram mais de duas horas, Dani diz que não passou de 20 minutos. Eu estava num caos, meus gritos, meus temores, minhas angustias... faziam um barulho ensurdecedor. Meu corpo inteiro foi tomado por essa sensação, nós eramos só vibração. Senti como se Dani, eu e Bebelle fossemos um. Ele pôs as mãos sobre a minha barriga e o seu toque nos unia. Então por um tempo tudo parou, o caos sessou e foi como se eu tivesse mergulhando no mar. Calmaria. Ela nasceu. Veio para os meus braços, assustada, tremendo as mãozinhas, mas sem chorar. Eu disse: Oi, você é a Isabelle? Eu sou sua mãe. Recostei-a no meu colo e ela mamou. Assim nasceu a minha Preta e assim eu morri para uma vida acomodada.

Meu parto não foi o padrão ourou que se tem propagado por aí. Eu fiz escolhas equivocadas, estudei pouco, não contratei doula, tomei ocitocina na hora errada, enfim, não me empoderei. Mas foi a melhor coisa que já me aconteceu. Foi o meu parto possível e que me aproximou de mim mesma.
Eu fui chuva, que permitiu que a uma criança nascer, uma família se fazer e uma mulher se instaurar.

O puerpério foi um tempo de explosão. Eu não cabia em mim. Queria sair pelas ruas gritando a todas sobre o que passei e como era bom parir. Comecei a estudar, lia tudo que me aparecia sobre parto humanizado. Eu me agigantei naquele momento"Nada do que eu fui me veste agora, Sou toda gota, que escorre livre pelo rostoE só sossega quando encontra a tua boca." (Maria Gadú, Quando fui chuva).  Eu estava tomada de amor pela minha filha e pela possibilidade de renascer profissionalmente. Não sabia como, mas eu precisava lidar com parto cotidianamente. Voltei a trabalhar e todos os dias alguma grávida me procurava pra conversar, alguém me contava uma história de parto... Tudo apontava para um novo caminho. Mas não era fácil abandonar um rumo trilhado com tanto empenho. Há tempos eu sabia de mim por aquele lugar. Demorei quase um ano para fechar esse ciclo. Tive que compreender que não se tratava apenas de trabalho, mas também dos meu lutos pessoais que precisavam ser elaborados. Depois dessa análise eu pude enfim trasmutar a energia do morrer para o nascer.

. Minha intenção era levar a cada gestante a luz que brilhava em mim.

Fiz o curso de doula pelo Inshtar/Minhas doulas e depois de um mês já estava doulando a primeira gestante, Vanessa, a quem serei eternamente grata pela oportunidade. Assim como as professoras e colegas de turma do curso que ainda hoje partilham experiências comigo.

Quando o trabalho engrenou de vez eu pude sentir a graça que é servir a gestantes. Não há nada mais belo e mágico que servir a luz. Tomada de gratidão por ter tomado outro rumo, meu corpo deu sinais que ele também se modificou. Ele se tornou morada para outro ser. Deus mandou outro anjo para ser acolhido e cuidado em nossa família. A vida se recria novamente em meu ventre e não podia ser diferente, eu sou pura criação. Mas já que ficarei um tempo sem doular, fiz um blog pra me comunicar com outras mulheres e poder partilhar essa missão. Outras mudanças se aproximam. Tudo sairá do lugar novamente. E é assim mesmo. Algo morre, para que algo nasça. E foi assim que eu cheguei aqui.

* Síndrome das pernas inquietas: agitação motora involuntária dos membros inferiores. Se identificou, ne?!

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